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Tribunal anula decisão que culpou francesa pelo divórcio por falta de relações sexuais; no Brasil, lei não reconhece culpa
Uma mulher que foi responsabilizada na Justiça francesa pelo divórcio, por deixar de ter relações sexuais com o ex-marido, conseguiu revogar a decisão no Tribunal Europeu de Direitos Humanos – TEDF. A Corte considerou que a decisão viola o direito à privacidade e à liberdade sobre o próprio corpo.
Em comunicado oficial, divulgado na última semana, o Tribunal conta que a mulher casou-se em 1984 e teve quatro filhos, entre eles um com deficiência severa. Em 2002, o marido passou a abusar dela física e verbalmente e, em 2004, ela parou de ter relações íntimas com ele, devido ao impacto desse comportamento, problemas de saúde e o estresse causado pelo cuidado constante com o filho. Quando ela pediu o divórcio, a Justiça francesa a culpou pelo rompimento e rejeitou as alegações de violência.
Quase vinte anos depois, em decisão unânime, o Tribunal Europeu anulou a responsabilização e determinou que o casamento não pode forçar uma pessoa a ter relações sexuais contra a sua vontade, além de concluir que exigir tal “dever conjugal” viola os direitos fundamentais, como a liberdade sexual e o direito sobre o próprio corpo.
A advogada Patrícia Novais Calmon, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, vê a decisão como um marco na consolidação dos direitos individuais dentro do casamento.
“Ao invalidar a justificativa do ‘dever conjugal’ como fundamento para um divórcio por culpa, a Corte reforça a importância do consentimento como uma escolha contínua e não como uma obrigação decorrente do estado civil. É um passo importante para afastar interpretações ultrapassadas sobre o papel das mulheres no casamento, que muitas vezes as colocam como subordinadas”, ela afirma.
Separação prévia e culpa
No Brasil, desde a promulgação da Emenda Constitucional 66/2010, concebida pelo IBDFAM, responsável por eliminar o requisito da separação prévia e da comprovação de culpa de uma das partes, o divórcio passou a ser um direito potestativo, ou seja, que não admite contestações. Sendo assim, a legislação atual não reconhece a discussão de culpa no contexto do divórcio.
O Código Civil atual, de 2002, prevê, entre os deveres conjugais, o respeito, a fidelidade, a coabitação, a cooperação e a assistência, e não impõe o chamado “dever sexual”, na medida em que o consentimento é considerado um princípio-base dessas relações.
“O Direito das Família tenta garantir que o consentimento seja um pilar das relações conjugais, mesmo que ele não esteja explicitamente formulado, mas possa ser fundamentado pela noção de igualdade entre os cônjuges e o respeito à dignidade da pessoa humana, previstos pela Constituição Federal. No entanto, ainda existem julgamentos e mentalidades que tratam o casamento como uma espécie de ‘contrato de obrigações mútuas’, o que pode abrir espaço para interpretações distintas”, avalia Patrícia Calmon.
Apesar de o consentimento ser considerado um princípio-base das relações conjugais, na medida em que o Código Civil prevê a igualdade entre os cônjuges e o respeito mútuo, o consentimento sexual ainda é abordado de forma discreta pela abordagem jurídica.
“O Direito das Família tenta garantir que o consentimento seja um pilar das relações conjugais, mesmo que isso não esteja sempre explicitamente formulado. A noção de igualdade entre cônjuges e o respeito à dignidade da pessoa humana, protegidos pela Constituição Federal, são fundamentos fortes nesse sentido. No entanto, ainda existem julgamentos e mentalidades que tratam o casamento como uma espécie de ‘contrato de obrigações mútuas’, o que pode abrir espaço para interpretações distintas”, avalia Patrícia Calmon.
A advogada acrescenta que tais interpretações ignoram o direito à recusa e desconsidera que o consentimento deve ser algo renovado constantemente, e não presumido. “O desafio está em eliminar essas interpretações arcaicas e promover uma visão que respeite a autonomia e a liberdade dentro da relação. Essa visão deturpada tem sido substituída por uma interpretação moderna que prioriza a autonomia e o consentimento.”
Questão de gênero
O ordenamento jurídico brasileiro prevê proteção aos direitos à dignidade e à liberdade sexual por meio da Constituição Federal, do Código Civil e de legislações específicas, como a Lei Maria da Penha. Ainda assim, a eficácia prática depende da interpretação dos magistrados, da capacidade para lidar com questões de gênero e da promoção de uma cultura alinhada à igualdade e ao respeito.
“O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero ressalta a importância de combater desigualdades de gênero e respeitar a dignidade das mulheres nos julgamentos. Essa perspectiva desconstrói interpretações baseadas em papéis tradicionais que violam a autonomia sexual. Apesar de avanços legais no Brasil, a promoção de uma cultura do consentimento ainda enfrenta barreiras culturais. Adotar essa abordagem nos julgamentos é essencial para garantir o pleno reconhecimento do direito à autonomia sexual”, comenta Patrícia Calmon.
Para ela, a ideia de consentimento como algo essencial nas relações enfrenta resistência em uma sociedade que ainda é “patriarcal e conservadora”. A advogada defende que o tema deve ser abordado em campanhas educativas e reconhece que as barreiras históricas e sociais podem dificultar mudanças mais rápidas. E conclui: “O avanço legal é inegável, mas a internalização desses valores no cotidiano das relações interpessoais parece ser um trabalho que ainda exige esforços contínuos”.
Por Guilherme Gomes
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